Por que o Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil (2024)

Berço das águas

Pensar em Cerrado é pensar em água – o bioma é berço de nascentes que alimentam oito das 12 grandes bacias hidrográficas brasileiras e ainda abriga importantes áreas de recarga hídrica. Também é lá onde ficam as cabeceiras dos rios que formam a maior planície alagada do planeta, o Pantanal.

“Quanto mais diversidade de espécies de plantas, raízes e ocupações diferentes, maior será a quantidade de água armazenada debaixo da terra. Quanto mais rico um trecho, mais água será absorvida pelos lençóis freáticos”, explica Walter. “As chuvas podem continuar as mesmas se preservarmos a Amazônia, mas, sem o Cerrado, não há o armazenamento dessa água.”

O biólogo e professor associado da Universidade de Brasília (UnB) Reuber Brandão fez um monitoramento de longo prazo de populações de anfíbios e lagartos, acompanhando processos de extinção associados a alterações profundas do ambiente em diversos pontos do Cerrado. Na região da represa de Serra da Mesa, por exemplo, houve uma perda de biodiversidade muito acelerada de anfíbios. Cerca de 50% em apenas três anos. “Lagartos são um pouco mais resistentes. Ainda assim, das 14 espécies que existiam em ilhas na época da formação do lago da hidrelétrica, restaram somente três. A mudança na paisagem tem um efeito fortíssimo sobre esses animais”, explica o pesquisador.

Ovos de anfíbios não têm casca e ficam diretamente em contato com a água, absorvendo tudo o que está nela. A pele do girino é sensível a qualquer troca com o ambiente. Quando adulto, ele deixa o meio exclusivamente aquático, mas continua com a pele permeável. Por consumir insetos, tornam-se esponjas de toxinas, sejam elas do ar, da água ou do alimento. Por isso os anfíbios são excelentes indicadores de qualidade ambiental. “Onde esse bicho está, ali tem boa qualidade. Por isso usamos a presença do sapo para chamar a atenção para a conservação da água, das primeiras cabeceiras – conservar córregos, riachos que vão ser utilizados pelos proprietários rurais”, diz Brandão. “Com isso, tentamos convencê-los a criar reservas particulares de proteção das nascentes.”

Em sua dinâmica natural, o Cerrado não entra em dormência na estação seca. “Quando trocamos isso por uma agricultura intensiva, muda-se o funcionamento do sistema, os ciclos geoquímicos do Cerrado”, explica o ecólogo Daniel Luis Mascia Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Assim, temos mais enchente, menos infiltração do solo; falta água na época seca e podemos ter insegurança hídrica.”

Segundo ele, a pressão da fronteira agrícola também tem impactos profundos na fauna e flora. “Quando o Cerrado é trocado pela agricultura, acabou, não tem mais biodiversidade”, diz. “O ideal é manter corredores ecológicos, áreas de reserva legal para ter conexão, fluxos de animais, de plantas.”

Mas o bioma conhecido por ser um mosaico de tipos de vegetação é hoje um grande quebra-cabeças de fragmentos de mata entrecortados por lavouras. Com pouca conectividade entre os trechos, que são pequenos e isolados, as reservas ficam mais suscetíveis a qualquer impacto – alterações climáticas, caça ilegal e fogo descontrolado.

Além disso, com a morte do bioma, também morrem culturas. “O agronegócio tem o seu valor, mas existem povos e comunidades tradicionais no Cerrado – é um hotspot de cultura”, diz Vieira. “Tem dezenas de comunidades que vivem desse ecossistema, e eles criam gado solto, cultivam nas beiras dos rios, têm sistemas agroflorestais, coletam frutos nativos. Há toda uma relação de uso do Cerrado com pouco impacto, pouca transformação ambiental.”

Para os pesquisadores entrevistados pela reportagem, o bioma pode sim ser usado para produção agropecuária, mas ela tem que andar junto dos esforços de conservação. “Não sou radical, temos que produzir, mas esse equilíbrio entre produção e conservação tem sido muito fragilizado pelas técnicas de agricultura de grande extensão, que passa o correntão e elimina absolutamente tudo que vê pela frente, principalmente em áreas planas”, diz Walter, colaborador do projeto Flora Brasil. “As áreas de conservação do Cerrado começam a se restringir a morros de pedra, onde não dá para fazer agricultura, e faixas de mata de galeria, que não é onde está a riqueza do Cerrado. Ela está nas suas áreas de savana, e justamente essa parte do bioma não tem proteção alguma, é ela que está indo embora.”

Para Reuber Brandão, biólogo da UnB, “a gente tem que entender que o território é coletivo e pertence à sociedade brasileira, portanto não pode ser dado à um único setor nacional”, diz ele. “Se tem que aumentar a produção e a infraestrutura, não tem problema, desde que isso seja acompanhado de ações para a conservação da biodiversidade.”

Recuperação do Cerrado

Está comprovado: o Cerrado está ficando mais seco e mais quente. Um estudo publicado na revista científica Global Change Biology mostrou que a elevada supressão de vegetação nativa, somada a incêndios de grandes proporções, tem provocado elevação das temperaturas, o que prejudica ciclos de fotossíntese, absorção de luz e formação de orvalho, muitas vezes a única fonte de água para insetos polinizadores, cruciais para a manutenção da biodiversidade durante a estação seca. O resultado poderá ser uma reação em cadeia, que levará o Cerrado ao colapso em apenas 30 anos, caso as tendências de aumento médio de temperatura observadas continuem. Recuperar o bioma é preciso, e urgente.

“Tem muita área no Cerrado que pode ser mais bem utilizada se for mais bem manejada, com técnicas de agricultura mais eficientes, menos monoculturas extensas que precisam de muito agrotóxico e adubos químicos”, avalia Walter. “O custo ambiental disso não vem na hora, mas ele chega. É toda uma cadeia de problemas que enriquece apenas um grupo pequeno de pessoas.”

Daniel Luis Mascia Vieira, pesquisador da Embrapa, trabalha com técnicas de restauração de pastagens e ressalta que há uma grande oportunidade de colocar elementos de conservação dentro das áreas de produção. “Uma pastagem pode ser só capim exótico ou pode ser uma pastagem com centenas de árvores nativas, que podem auxiliar na produção, mantendo a água, melhorando a qualidade do solo. Dá para conciliar e ter uma intensificação de produção mais sustentável”, diz ele, reforçando que isso não se aplica às grandes plantações. “A agricultura não. É todo um sistema construído para ser monocultura.”

Para planejar a restauração é preciso mapear as áreas destinadas para recuperação, prioritariamente pastagens degradadas, em áreas de pouca chuva e sem valor para a agricultura, como declives. A recuperação da produtividade salva áreas para a conservação. “Quando falamos de restauração, estamos falando em recuperar a produtividade do solo”, continua Vieira. “Temos, por exemplo, um pasto que não produz quase nada ou tem uma pecuária extensiva, com um boi por hectare; podemos intensificar esse hectare com mais bois, com melhor manejo desse gado e, assim, manter uma parte de Cerrado. Pode-se ainda fazer agricultura intensiva, ou um revezamento do cultivo com pasto, que é superprodutivo.”

A fim de estimular as boas práticas, a Embrapa criou selos de certificação dos produtos provenientes de pastagens mais sustentáveis. O Carne Carbono Neutro identifica a produção que sequestra e não libera carbono e o Carne Carbono Nativo, pastagens que, além de não emitirem CO2, são compostas por árvores nativas. “Vamos avançando, tanto do ponto de vista de pesquisa, quanto de marketing e de atingir o mercado consumidor. Eu acho que as sociedades, brasileira e internacional, cada vez mais, vão querer que façamos uma agricultura conservacionista”, ressalta Vieira. Implementar práticas agrícolas mais amigáveis requer trabalhar em todas as esferas. “Tem que haver incentivos econômicos e fiscais para que produtores rurais possam se adaptar, adotar novas tecnologias, restaurar. Prover assistência técnica e capacitação, encontrar canais de escoamento da produção para onde se agregue valor à biodiversidade, à sustentabilidade. E, claro, precisamos destinar recursos para pesquisas, aprender a fazer melhor continuamente.”

Unidades de conservação

A porcentagem de unidades de conservação (UC) no Cerrado é 8,3%. Tratam-se de porções territoriais com limites definidos instituídas pelo poder público ou iniciativa privada de forma voluntária, com o objetivo de conservar um espaço natural, sua biodiversidade e seus recursos.

Para Brandão, não dá para falar em conservação de biodiversidade sem uma política que reserve áreas específicas, com transformação mínima da ocupação de território, com o objetivo de manter as condições necessárias para que processos ecológicos e evolutivos continuem acontecendo, mesmo que em escala reduzida.

“Não tem uma solução única para um contexto tão complexo quanto o Cerrado. Tem vastas regiões do bioma – no Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins – onde ainda se pode criar UCs de proteção integral – são elas que vão segurar o Cerrado”, explica Brandão. “Nas áreas mais degradadas, devemos pensar em recomposição de mata de galerias, regeneração dos ecossistemas e conectividade dos fragmentos; proprietários rurais que mantém áreas protegidas em suas propriedades também precisam ser bem remunerados por isso.”

Embora sejam reconhecidas internacionalmente como as ferramentas mais eficientes para garantir a conservação da biodiversidade, as unidades de conservação vêm sofrendo constantes ataques no país. Em agosto, foi protocolado na Câmara dos Deputados um projeto de decreto legislativo que reduziria em até 73% a área do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, ao revogar decreto de 2017 que ampliou a área de 65 mil para 245 mil hectares. O local é um dos últimos refúgios para diversas espécies e tem formações vegetais singulares.

“Esse lobby forte que existe no agronegócio tenta criar uma narrativa de que a única maneira de desenvolver o Brasil é produzir commodities em grandes proporções, quando, na verdade, existe um potencial gigantesco no Brasil de usar a biodiversidade para se tornar uma potência biotecnológica, produtos que com pouco investimento entram no mercado internacional”, argumenta Brandão. “Quando a gente não valoriza e não conserva a biodiversidade, perdemos oportunidades de criar produtos alimentícios, cosméticos, medicamentos e muitos outros.”

De fato, o investimento em alternativas que conciliem potencial biológico, diversidade de cadeias produtivas, respeito às comunidades, estratégias de recuperação e proteção da natureza e práticas agrícolas sustentáveis parece ser o único caminho para evitarmos o colapso do Cerrado.

“É uma questão civilizatória, de futuro da sociedade e do país. Se nós perdermos o Cerrado, se perdermos a capacidade produtiva agrícola, a biodiversidade do bioma, vamos caminhar para o empobrecimento cada vez maior do país”, defende Brandão. “A gente tem que valorizar os nossos ambientes naturais não só sob o ponto de vista ecológico, mas como nossa essência, nossa história, o nosso reconhecimento como sociedade e nossa identidade como povo. Um país tão grande deve se unir, compreender que precisa haver espaço para todo mundo, entender o valor intrínseco da vida.”

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